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Caso Eloá: o que deu errado?

03/11/2008

Por Nilcéa Freire

Essa é a pergunta que não quer calar a respeito do desfecho trágico em Santo André, que culminou com a morte da adolescente Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos. Nossa indagação, contudo, não é apenas com relação ao desfecho do caso, mas com as causas não visíveis da morte da jovem: Eloá morreu porque transgrediu a “ordem social”, quando se recusou a continuar o namoro com Lindemberg. A sua recusa, a sua escolha por não estar mais com ele, a sua opção pelo fim da relação, foram a sua sentença: o “lugar” da jovem Eloá na ordenação tácita da sociedade não é a de rechaçar o macho, e, sim, o de, ao ser escolhida por ele, aceitá-lo, acatando sua vontade.

morreu previsivelmente por estar recusando uma relação de poder e dominação. Eloá morreu por ser mulher e por ser vítima de uma relação de desigualdade, baseada em uma cultura machista e patriarcal. Segundo essa lógica, a mulher que contraria a “ordem” pode e deve ser castigada para que tudo continue “no lugar”. E, com base nessa mesma lógica, milhares de mulheres são cotidianamente espancadas, brutalizadas, violentadas, para garantir que tudo continue acontecendo da mesma forma como acontece há séculos, para que a sociedade se reproduza mantendo cada um “no seu devido lugar”. O caso de Eloá, de grande repercussão midiática, traz à tona a realidade cotidiana de mulheres de distintas gerações e inserções sociais, mas que não viram notícia.

O debate estabelecido na imprensa e em toda a sociedade não deve se restringir, portanto, a possíveis erros na ação do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate). Ao tratar o caso como um crime passional, cometido por alguém que errou devido a um “amor incontrolável”, tanto policiais militares quanto veículos de comunicação acabam involuntariamente por justificar a ação de Lindemberg e escamoteiam o debate sobre esse típico caso de violência de gênero.

Esse episódio tão recente nos faz voltar no tempo. Há quase 40 anos, Ângela Diniz foi assassinada por seu namorado, Doca Street, também um homem “enlouquecido” de ciúmes, bem como Sandra Gomide por Pimenta Neves, que mesmo “fora de si” pôde planejar friamente o seu crime. Mas, infelizmente, no presente, esse caso nos remete às 134 denúncias de cárcere privado recebidas pela Central de Atendimento à Mulher — ligue 180, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República —, no período de janeiro a setembro deste ano. Para a sorte de algumas, a atitude de um/a vizinho/a comunicando suas desconfianças à Central salvou suas vidas.

A violência de gênero é tão vigente em nossa sociedade que depois da morte da adolescente, em Santo André, vários seqüestros, casos de cárceres privados e até assassinatos foram noticiados no país. A cada dia, a lista de mulheres mortas e agredidas por seus parceiros e ex-parceiros aumenta. Só no Estado de São Paulo ocorrem três casos semelhantes de seqüestro e um deles culminou na morte de uma adolescente, de apenas 19 anos, pelo seu ex-namorado; em Minas Gerais foram três; e em Brasília, uma mulher morreu assassinada pelo seu ex-companheiro. Não podemos mais aceitar a naturalização desse tipo de violência.

Muitas conquistas têm sido obtidas pelas mulheres. A primeira delas é o reconhecimento de que a violência doméstica não é um assunto privado, mas é uma questão de Estado, que precisa ser tratada publicamente e enfrentada com políticas públicas. No entanto, a certeza da impunidade que alimenta tantos crimes é lamentavelmente reforçada quando a agressão de um namorado contra a sua parceira é retirada do âmbito da Lei Maria da Penha, com base numa interpretação jurídica equivocada do significado das relações de convivência íntima, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Como canta Chico, a “dor da gente não sai no jornal”. As agressões sofridas por centenas de mulheres, aquelas que não saem no jornal, podem não resultar em um desfecho como o de Eloá, mas será preciso interpretá-las corretamente, identificá-las a tempo, compreender a sua natureza. Para isso, é preciso que toda a sociedade reconheça que as mulheres têm direito ao poder, não sobre os homens, mas sobre elas mesmas (segundo Simone de Beauvoir).

Nilcéa Freire é médica, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

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